Em
1970, minha vida era vivida no ritmo que é dado a um menino carioca de 13 anos;
escola, brincar e ir à praia com os amigos; era tudo com o que eu tinha que me
preocupar. Não mais do que isso.
Foi
o ano em que o Brasil sagrou-se tricampeão no México. Um ano também, em que os
porões da ditadura selavam o destino de muitos brasileiros contrários ao regime
de governo da época. Eu tinha 13 anos e ouvia meu pai dizer que a “coisa estava
feia” e não entrava em detalhes.
Estávamos
em pleno auge da ditadura. Havia um sentimento estranho no cenário político da
época. Vale dizer que em 1969, Marighela foi morto pela polícia em São Paulo e
a imagem dele metralhado dentro do carro, estampava as primeiras páginas dos
jornais. Um horror de ser visto nas bancas de jornais! Isto recentemente me fez
lembrar que ele foi meu vizinho no 131 da Correa Dutra. Ele morava no
apartamento 804; e lembrei também, que estive no apartamento dele, junto com um
amiguinho e o pai dele, que conhecia Marighela e talvez por ser vizinho do 803,
baiano também ou simpatizante da causa, entramos no apartamento dele, nem sei
porque. Isto aconteceu, possivelmente em 68.

Certo
dia, conversando com Puck, movido talvez pelas notícias que circulavam naquela
época, sobre terroristas, prisões, comunistas, torturas e não lembro mais o que,
comentei que se eu fosse polícia, eu saberia como lidar com eles. Seria fácil obter informações dos “vermelhos”
aplicando algumas técnicas de tortura. A inconsequente e desvairada imaginação
de um guri com 13 anos ou um pouco mais, se evidenciava naquele momento.
-
Sabe, Puck? Pra mim seria fácil fazê-los falar! Entregariam tudinho!
-
É? E o que você faria de novidade, sabidão?
-
Bom, tem aquela tortura chinesa de deixar um pingo d’água caindo na testa...
-
Peraí! Essa já existe!
-
Eu sei, cara! Deixa eu falar! Deixava os pinguinhos caírem e aproveitava que enquanto
eles estava amarrados, enfiava um prego enferrujado bem no buraco do pinto
deles! Imagine! Além da dor, morreriam de tétano! Viu, que ideia genial?
Pude
ver os olhos arregalados do Puck e ri ao vê-lo num misto de assombro e incredulidade,
ao perceber que aquele guri, que ele considerava como amigo, pensava em tal
atrocidade.
Passaram-se
mais de 20 anos desde que tive esta conversa com Puck.
Certo
dia acordei, abri a janela e pude ver o sol nascendo e iluminando o rio Danúbio.
Meu apartamento modesto, com poucos móveis, situava-se em Budapeste, na Hungria,
na avenida Nagytétenyi út, nº 157 – 3º andar; com vista para o famoso rio. Um
espetáculo que acalentava minha solidão; tantos anos longe do Brasil, longe dos
amigos e do jeito brasileiro de ser. Meu olhar perdido em lembranças.
Vivia
apenas para o trabalho e não me dava o direito de ter amigos, nem de casar, ter
filhos, estas coisas que as pessoas normais fazem ao longo da vida. Acordava e
ia para o trabalho de instrutor da Academia de Polícia Húngara - Magyar
Rendőrakadémia, treinar jovens policiais em técnicas de combate às quadrilhas
de milicianos e inimigos do governo.
Nesta
época, escrevi um manual: "Az ellenséges meggyőzési technikák és a városi
gerillataktika katonai gyűjteménye” – Compêndio paramilitar de técnicas de
persuasão e táticas de guerrilha; sendo este o material aplicado no treinamento
daquela horda sanguinária comunista.
Muitas
noites ficava acordado, insone, pensando como eu fui parar naquele país. Nunca
tive simpatia pela ideologia marxista, apesar de ter lido muito sobre a
revolução russa – mais por interesse em evitá-la do que pela vontade de vive-la.
Mas isto é outra história. Outro dia eu conto.
Youseph
Trinks era um jovem de vinte e poucos anos, que estava em seu estágio de
aprendizado e treinamento. Vinha de uma família de camponeses e tinha deixado
sua mãe e duas irmãs adolescentes no interior, em Érpatak, cidadezinha a 150
km, onde morava. Seu objetivo era dar conforto a sua mãe e bons estudos às suas
irmãs; por isso, ingressou na polícia húngara com ambições de ascensão funcional
e ganhos satisfatórios.
Testei
várias vezes o pobre Youseph. Queria ver até onde ele iria em seus escrúpulos e
objetivos. Do que seria capaz de fazer. Por diversas vezes, entreguei a ele, o
comando de algumas tarefas que qualquer cristão com um mínimo de sanidade se
recusaria. Uma delas, era obrigá-lo a beber 1 garrafa de pálinka – bebida típica
húngara, podendo chegar a 70% de teor alcoólico; entregar-lhe uma pistola e
pedir que atirasse em um isqueiro, sobre a cabeça de algum prisioneiro. Demorou
um pouco, mas o rapaz, acabou se saindo bem, depois de 18 tentativas, é fato –
tornou-se um exímio atirador. Um outro teste foi colocá-lo em uma piscina com duas
anacondas famintas e dois prisioneiros com as mãos e pés amarrados. A missão
seria, livrar os prisioneiros sem que as anacondas pegassem os três. Mais uma
vez, Youseph custou a se sair bem. Não posso dizer o mesmo dos prisioneiros;
que invariavelmente não colaboravam. Mas depois de 10 tentativas, Youseph
conseguiu salvar os dois prisioneiros, entendendo que primeiro tinha que liquidar
as anacondas – óbvio, né!?
Quando
me aposentei fiquei sabendo que o tal compêndio havia sido extraviado da
academia e podia ser encontrado no submundo das ruas de Budapeste. Existia uma
livraria (!!!) especializada em assuntos obscuros e nefastos e que somente alguns
clientes muito especiais sabiam como chegar até ela. Assuntos como cabala egípcia,
livro de receitas etrusco ensinando a fazer poções venenosas, manual de sexo tântrico
para homens-tronco, Tratado de odontologia ensinado extração de dentes sem
anestesia, manual de como diminuir cabeças embebidas em poções naturais, manual
de tortura javanesa, o livro sagrado de sacrifícios aztecas; enfim, cada coisa
arrepiante. A livraria pertencia a uma senhora, chamada Nalatrinova Cortezana –
“a bruxa”. Figura assustadora, tinha o cabelo vermelho e a pele cheia de
sardas, usava um tapa-olho para disfarçar o buraco deixado por um câncer no
globo ocular e dentes limados em formato de presas, combinando com suas unhas
em forma de garras. Com 2,10 m de altura, Nalatrinova dominava praticamente,
todos os assuntos de sua livraria (?). A última notícia que tive, a seu respeito,
foi que havia sido capturada pelo Estado Islâmico, para que os ajudasse a montar
uma franquia de sua livraria, nos arredores de Kabul, no Afeganistão.
Sendo
assim, prezados, minha conversa com Puck tomou um rumo inesperado, que jamais
poderia imaginar. Agora faz parte de um mundo, ao qual me distanciei há muitos
anos, me convertendo ao islamismo neo-contemporâneo com influência flamenca.
Vivo
em uma pequena casa, feita de troncos de eucalipto, próximo a uma cachoeira, em
contato permanente com a natureza, buscando paz para meu coração. Quem sabe um
dia, escrevo um livro ou conto minha história para um seriado da Netflix? Sei
lá. Deixo a vida me levar...Menino Kibe