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ssim iniciamos essa história, que a
princípio poderia ser uma obra de ficção, mas que a realidade das ruas se impõe
de forma de uma pequena novela tragicômica; lembrando-nos de Nelson Rodrigues.
O cenário do ocorrido é
justamente em um dos bairros mais icônicos da boemia carioca, a Lapa; recortada
por diversas ruas importantes, tais como Lavradio, dos Arcos, do Senado,
Inválidos, Evaristo da Veiga, da Glória e Riachuelo.
Um bairro que acolheu além
de prostitutas, gigolôs, criminosos em geral, pessoas de bem, tais como
trabalhadores e suas famílias, até mesmo celebridades cariocas, nacionais e de até
de renome internacional; cada um à sua época, tais como Machado de Assis; Carmem
Miranda, Manuel Bandeira; Jorge Amado; Silvio Santos; Péricles
Maranhão (autor de "O Amigo da Onça"); Lamartine Babo; Orestes
Barbosa; Heitor Villa-Lobos; Jorge Selarón; Lima Barreto; Madame
Satã entre outros.
Mas é justamente na Rua do
Riachuelo, no número 373, onde morava, há mais de 30 anos, em um dos quartos do
apartamento 904, Atarcicio de Souza Barboza. O nome por si só, já dá
uma ideia do quanto misterioso possa ser a vida de tal cidadão. Quem daria um
nome como este a um cristão? Certamente pertenceu à família dos “Souza Barbosa”;
que até parece nome de rua. Quem sabe em Vila Valqueire ou Vilar dos Teles a
gente encontre uma rua com este nome? Mas deixa pra lá, é só uma especulação
sem fundamento algum e também sem preconceito.
Pois bem. Atarcicio morou neste
apartamento até o dia 25 de abril deste ano; mas nada teríamos a relatar se não
fosse o caso de ele ter morrido no dia 24 neste mesmo apartamento.
Inquilino de nosso amigo Beto
PQD, ou Uberto Olsen, como assim consta nos arquivos da Receita Federal e do
Instituto Félix Pacheco, que faz a “administração imobiliária”, de alguns
imóveis recebidos por herança de sua falecida mãe, Atarcicio residia em um de
seus quartos, a mais de 30 anos, e nada se sabe a respeito do respeitável e
misterioso senhor de 80 anos. A não ser que era uma pessoa simples de pouca
conversa e nenhum amigo ou amiga que pelo menos lhe visitasse. Tampouco tinha a
quem se pudesse informar o triste fato. O que fazer?
Mas quatro dias antes de Atarcicio
subir aos céus, PQD (que também é morador do prédio, justamente no apartamento
do andar de baixo e na mesma prumada) foi informado pelos moradores de outros
quartos do mesmo apartamento, preocupados com o idoso, que ele apresentava
sinais visíveis de que estava com corona-vírus.
PQD, foi até ele e perguntou-lhe:
- “Seu Atarcicio, o senhor não está
bem? Quer que chame o SAMU? Eles podem lhe dar algum auxílio, fazer algum
exame. Acho bom chamar!”.
- “Não precisa, meu filho. Estou
bem. Sou velho mas sou forte, fiz muitos exercícios quando mais jovem. É só uma
gripezinha”. Dando três tossidas seguidas, um espirro e soltando um pum; pedindo
para ficar a sós em seu quarto.
Pedido feito. Pedido atendido.
Por volta das nove horas da manhã
de sábado, chegou a notícia que o Atarcicio havia subido pro “andar mais de
cima”.
- “Oi, Seu Beto. Desculpe
incomodar. Batemos na porta do quarto do seu “Atraciço” e ele não respondeu.
Então, entramos e ele estava lá deitadinho na cama, mortinho da silva”. Disse
Valdete, moradora de um dos quartos; copeira de uma pastelaria na Rua da Quitanda;
magrinha que só, de uns trinta e poucos anos, cabelos tingidos de louro
Koleston e uma tatuagem no braço, com o dizer: Lucivaldo.
- “Carái, véi! Que é que eu vou
fazer? O velhinho não tinha parentes e nem sei pra quem ligar pra avisar? O
caderninho de telefone dele só tem número antigo e ninguém responde.” Disse PQD,
já imaginando a trabalheira que seria resolver aquela situação.
- “Ó seu Beto, melhor chamar a
polícia”. Disse Valdete, do alto de sua sapiência pasteleira.
- “Não. Primeiro vou chamar o
SAMU, e depois a polícia. Melhor”
Assim fez e após umas duas horas,
chegou a ambulância do SAMU, que fez o registro do óbito.
- “É. Realmente está morto”.
Disse o paramédico; e nem precisaria passar na calçada da faculdade de medicina
pra saber que sim; estava morto.
- “Ok. Atarcicio Souza Barbosa. Idade
80 anos. Cor, branca. 1,60 m, aproximadamente. Peso... deve estar com uns 50 e
poucos quilos, se muito. Pronto, seu Uberto. Assine aqui.”
PQD assinou e achou que a remoção
seria feito de imediato.
- “É....doutor. A remoção será
feita agora pro IML?”
- “Não, prezado.” A nós só cabe
somente atestar a morte; e como está escrito aí no documento: causa natural. O
senhor liga pra Polícia Civil que a responsabilidade é dela”.
- “Sei. Tá bom, tudo bem. Vou
ligar”.
PQD ligou imediatamente pra Polícia
Militar, que enviou em pouco tempo uma viatura.
A viatura chegou com dois policiais
com cara de tédio e se dirigiram ao PQD que estava na portaria do prédio
aguardando-os. Explicou a situação; mostrou o documento; e foi convidado a ir
até a 5ª DP fazer a ocorrência, cumprindo as “formalidades legais”.
“Cipriano, toca pra quinta! É
ocorrência simples!” – bradou o ilustre cabo da valorosa PM ao parceiro motorista.
E lá se foram, com direito a sirene e tudo (não sei pra que, mas ligaram assim
mesmo).
Chegando lá, PQD se deparou com o
escrivão de plantão. Uma figura estranha, com gel em uma faixa de cabelo sobre
o topo da cabeça, uma tatuagem de serpente no pescoço e um brinco em forma de
corrente com três elos dourados. “Acho que ele tem piercing no mamilo” – pensou
imediatamente o sacana do PQD.
- “Pois não, qual é o problema?”
PQD narrou o acontecido, enquanto
o escrivão de nome Jurandir, lavrava a ocorrência. Dez minutos depois,
ocorrência lavrada e entregue.
- ”Legal. Agora como se dará a remoção
do corpo?”, perguntou nosso amigo ao Jurandir.
- “Ô simpatia, me desculpe, mas
este tipo de serviço nós não fazemos não. O IML só faz remoção em caso de homicídios,
latrocínios e outros crimes com vítima fatal”.
Começa aqui a epopeia de Uberto
Olsen (que aliás tem nome de butique de grife, vocês não acham?). Ligou pra Prefeitura,
pro Corpo de Bombeiros e nenhum deles se prontificou a fazer a remoção do velho
Atarcicio (ô nome difícil!). Cada órgão passando para o outro tal
responsabilidade com os eventuais encaminhamentos de praxe.
-“Puta que pariu! Será que vamos
ter de colocar o Atarcicio no meio da rua? Será que estamos voltando a Idade Média?
Que falta de humanidade!” revoltou-se PQD.
Em suma, naquele dia PQD teria
que dormir com um defunto sobre sua cabeça, literalmente. As outras pessoas que
sublocavam o mesmo apartamento, PQD conseguiu alojá-los em quartos desocupados de
outros de seus imóveis, no mesmo edifício, e se sentiram agradecidos e
aliviados.
Em vista que nenhum órgão
municipal se prontificou a fazer a remoção, restou ao valoroso e humanitário
PQD buscar solução numa funerária, mas nas primeiras tentativas esbarrou na
documentação, pois era necessário a assinatura de um familiar, ou de um
responsável formal, e não teve opção senão ir dormir, mas com o olhar fixo no
teto de seu quarto, na mesma direção onde Atarcicio se encontrava em seu leito
de morte.
PQD dormiu aguardando uma chamada
do Escrivão que prometeu buscar uma solução, mas devido à pandemia deve ter esquecido
do caso. E é claro que não conseguiu um sono tranquilo. Tão logo adormeceu,
acordou de sobressalto pois sonhou com o velho Atarcicio atravessando o seu
teto e caindo em cima dele, duro, de frente, com os olhos arregalados,
parecendo querer abraça-lo, talvez para agradecer o empenho em leva-lo para sua
última morada.
No dia seguinte, ainda com sono
pela noite mal dormida, e fazendo uma vistoria em seu teto, constatou umas
manchas que ele não se lembrava de ter visto antes, mas preferiu acreditar que tinha
apenas sonhado com o defunto que deveria ainda estar deitado na direção de sua
cabeça.
Sem opções, resolveu buscar novas
funerárias e um inquilino, daqueles que não queria assunto com a polícia, o
indicou para a Boa Morte, uma funerária pequena, que ele já tinha utilizado
algumas vezes, cujo lema era “fazemos qualquer negócio: pagou, pegou, levou”, não
cobrava caro, e dava prioridade para casos parecidos com esse.
Para arcar com as despesas do
funeral de Atarcicio, PQD teria que arrumar cerca de R$ 3.000,00, mas que não
tinha disponível naquele momento, e se viu obrigado a fazer uma vaquinha entre
amigos, até pensou numa rifa, mas viu que não teria tempo para isso. Conversou
com os demais inquilinos, com suas filhas, também moradoras de um dos
apartamentos, e todos resolveram colaborar. Sr. Rafaelito, espanhol, dono da padaria
da esquina, sensibilizado atendeu ao pedido, pois Atarcicio era seu amigo e freguês,
todos os dias dava uma paradinha para o café da manhã, uma média com pão na
chapa, e colaborou com a metade da quantia.
Funeral realizado em alguma cova
rasa do Cemitério do Caju. Modesto e sem convidados. Que Deus em sua infinita
bondade receba Atarcicio em uma de suas moradas; e que nosso heróico, bravo e
retumbante paraquedista militar, Uberto “PQD” Olsen, receba mais uma medalha
por bravura e boa ação!