segunda-feira, 27 de abril de 2020

Dormindo com o defunto sobre a cabeça



A
ssim iniciamos essa história, que a princípio poderia ser uma obra de ficção, mas que a realidade das ruas se impõe de forma de uma pequena novela tragicômica; lembrando-nos de Nelson Rodrigues.
O cenário do ocorrido é justamente em um dos bairros mais icônicos da boemia carioca, a Lapa; recortada por diversas ruas importantes, tais como Lavradio, dos Arcos, do Senado, Inválidos, Evaristo da Veiga, da Glória e Riachuelo.
Um bairro que acolheu além de prostitutas, gigolôs, criminosos em geral, pessoas de bem, tais como trabalhadores e suas famílias, até mesmo celebridades cariocas, nacionais e de até de renome internacional; cada um à sua época, tais como Machado de Assis; Carmem Miranda, Manuel Bandeira; Jorge Amado; Silvio Santos; Péricles Maranhão (autor de "O Amigo da Onça"); Lamartine Babo; Orestes Barbosa; Heitor Villa-Lobos; Jorge Selarón; Lima Barreto; Madame Satã entre outros.
Mas é justamente na Rua do Riachuelo, no número 373, onde morava, há mais de 30 anos, em um dos quartos do apartamento 904, Atarcicio de Souza Barboza. O nome por si só, já dá uma ideia do quanto misterioso possa ser a vida de tal cidadão. Quem daria um nome como este a um cristão? Certamente pertenceu à família dos “Souza Barbosa”; que até parece nome de rua. Quem sabe em Vila Valqueire ou Vilar dos Teles a gente encontre uma rua com este nome? Mas deixa pra lá, é só uma especulação sem fundamento algum e também sem preconceito.
Pois bem. Atarcicio morou neste apartamento até o dia 25 de abril deste ano; mas nada teríamos a relatar se não fosse o caso de ele ter morrido no dia 24 neste mesmo apartamento.
Inquilino de nosso amigo Beto PQD, ou Uberto Olsen, como assim consta nos arquivos da Receita Federal e do Instituto Félix Pacheco, que faz a “administração imobiliária”, de alguns imóveis recebidos por herança de sua falecida mãe, Atarcicio residia em um de seus quartos, a mais de 30 anos, e nada se sabe a respeito do respeitável e misterioso senhor de 80 anos. A não ser que era uma pessoa simples de pouca conversa e nenhum amigo ou amiga que pelo menos lhe visitasse. Tampouco tinha a quem se pudesse informar o triste fato. O que fazer?
Mas quatro dias antes de Atarcicio subir aos céus, PQD (que também é morador do prédio, justamente no apartamento do andar de baixo e na mesma prumada) foi informado pelos moradores de outros quartos do mesmo apartamento, preocupados com o idoso, que ele apresentava sinais visíveis de que estava com corona-vírus.  
PQD, foi até ele e perguntou-lhe:
- “Seu Atarcicio, o senhor não está bem? Quer que chame o SAMU? Eles podem lhe dar algum auxílio, fazer algum exame. Acho bom chamar!”.
- “Não precisa, meu filho. Estou bem. Sou velho mas sou forte, fiz muitos exercícios quando mais jovem. É só uma gripezinha”. Dando três tossidas seguidas, um espirro e soltando um pum; pedindo para ficar a sós em seu quarto.
Pedido feito. Pedido atendido.
Por volta das nove horas da manhã de sábado, chegou a notícia que o Atarcicio havia subido pro “andar mais de cima”.
- “Oi, Seu Beto. Desculpe incomodar. Batemos na porta do quarto do seu “Atraciço” e ele não respondeu. Então, entramos e ele estava lá deitadinho na cama, mortinho da silva”. Disse Valdete, moradora de um dos quartos; copeira de uma pastelaria na Rua da Quitanda; magrinha que só, de uns trinta e poucos anos, cabelos tingidos de louro Koleston e uma tatuagem no braço, com o dizer: Lucivaldo.
- “Carái, véi! Que é que eu vou fazer? O velhinho não tinha parentes e nem sei pra quem ligar pra avisar? O caderninho de telefone dele só tem número antigo e ninguém responde.” Disse PQD, já imaginando a trabalheira que seria resolver aquela situação.
- “Ó seu Beto, melhor chamar a polícia”. Disse Valdete, do alto de sua sapiência pasteleira.
- “Não. Primeiro vou chamar o SAMU, e depois a polícia. Melhor”
Assim fez e após umas duas horas, chegou a ambulância do SAMU, que fez o registro do óbito.
- “É. Realmente está morto”. Disse o paramédico; e nem precisaria passar na calçada da faculdade de medicina pra saber que sim; estava morto.
- “Ok. Atarcicio Souza Barbosa. Idade 80 anos. Cor, branca. 1,60 m, aproximadamente. Peso... deve estar com uns 50 e poucos quilos, se muito. Pronto, seu Uberto. Assine aqui.”
PQD assinou e achou que a remoção seria feito de imediato.
- “É....doutor. A remoção será feita agora pro IML?”
- “Não, prezado.” A nós só cabe somente atestar a morte; e como está escrito aí no documento: causa natural. O senhor liga pra Polícia Civil que a responsabilidade é dela”.
- “Sei. Tá bom, tudo bem. Vou ligar”.
PQD ligou imediatamente pra Polícia Militar, que enviou em pouco tempo uma viatura.
A viatura chegou com dois policiais com cara de tédio e se dirigiram ao PQD que estava na portaria do prédio aguardando-os. Explicou a situação; mostrou o documento; e foi convidado a ir até a 5ª DP fazer a ocorrência, cumprindo as “formalidades legais”.
“Cipriano, toca pra quinta! É ocorrência simples!” – bradou o ilustre cabo da valorosa PM ao parceiro motorista. E lá se foram, com direito a sirene e tudo (não sei pra que, mas ligaram assim mesmo).
Chegando lá, PQD se deparou com o escrivão de plantão. Uma figura estranha, com gel em uma faixa de cabelo sobre o topo da cabeça, uma tatuagem de serpente no pescoço e um brinco em forma de corrente com três elos dourados. “Acho que ele tem piercing no mamilo” – pensou imediatamente o sacana do PQD.
- “Pois não, qual é o problema?”
PQD narrou o acontecido, enquanto o escrivão de nome Jurandir, lavrava a ocorrência. Dez minutos depois, ocorrência lavrada e entregue.
- ”Legal. Agora como se dará a remoção do corpo?”, perguntou nosso amigo ao Jurandir.
- “Ô simpatia, me desculpe, mas este tipo de serviço nós não fazemos não. O IML só faz remoção em caso de homicídios, latrocínios e outros crimes com vítima fatal”.
Começa aqui a epopeia de Uberto Olsen (que aliás tem nome de butique de grife, vocês não acham?). Ligou pra Prefeitura, pro Corpo de Bombeiros e nenhum deles se prontificou a fazer a remoção do velho Atarcicio (ô nome difícil!). Cada órgão passando para o outro tal responsabilidade com os eventuais encaminhamentos de praxe.
-“Puta que pariu! Será que vamos ter de colocar o Atarcicio no meio da rua? Será que estamos voltando a Idade Média? Que falta de humanidade!” revoltou-se PQD.
Em suma, naquele dia PQD teria que dormir com um defunto sobre sua cabeça, literalmente. As outras pessoas que sublocavam o mesmo apartamento, PQD conseguiu alojá-los em quartos desocupados de outros de seus imóveis, no mesmo edifício, e se sentiram agradecidos e aliviados.
Em vista que nenhum órgão municipal se prontificou a fazer a remoção, restou ao valoroso e humanitário PQD buscar solução numa funerária, mas nas primeiras tentativas esbarrou na documentação, pois era necessário a assinatura de um familiar, ou de um responsável formal, e não teve opção senão ir dormir, mas com o olhar fixo no teto de seu quarto, na mesma direção onde Atarcicio se encontrava em seu leito de morte.
PQD dormiu aguardando uma chamada do Escrivão que prometeu buscar uma solução, mas devido à pandemia deve ter esquecido do caso. E é claro que não conseguiu um sono tranquilo. Tão logo adormeceu, acordou de sobressalto pois sonhou com o velho Atarcicio atravessando o seu teto e caindo em cima dele, duro, de frente, com os olhos arregalados, parecendo querer abraça-lo, talvez para agradecer o empenho em leva-lo para sua última morada.
No dia seguinte, ainda com sono pela noite mal dormida, e fazendo uma vistoria em seu teto, constatou umas manchas que ele não se lembrava de ter visto antes, mas preferiu acreditar que tinha apenas sonhado com o defunto que deveria ainda estar deitado na direção de sua cabeça.
Sem opções, resolveu buscar novas funerárias e um inquilino, daqueles que não queria assunto com a polícia, o indicou para a Boa Morte, uma funerária pequena, que ele já tinha utilizado algumas vezes, cujo lema era “fazemos qualquer negócio: pagou, pegou, levou”, não cobrava caro, e dava prioridade para casos parecidos com esse.
Para arcar com as despesas do funeral de Atarcicio, PQD teria que arrumar cerca de R$ 3.000,00, mas que não tinha disponível naquele momento, e se viu obrigado a fazer uma vaquinha entre amigos, até pensou numa rifa, mas viu que não teria tempo para isso. Conversou com os demais inquilinos, com suas filhas, também moradoras de um dos apartamentos, e todos resolveram colaborar. Sr. Rafaelito, espanhol, dono da padaria da esquina, sensibilizado atendeu ao pedido, pois Atarcicio era seu amigo e freguês, todos os dias dava uma paradinha para o café da manhã, uma média com pão na chapa, e colaborou com a metade da quantia.
Funeral realizado em alguma cova rasa do Cemitério do Caju. Modesto e sem convidados. Que Deus em sua infinita bondade receba Atarcicio em uma de suas moradas; e que nosso heróico, bravo e retumbante paraquedista militar, Uberto “PQD” Olsen, receba mais uma medalha por bravura e boa ação!

5 comentários:

Mario Neves disse...

PQD,esse seu vizinho é o verdadeiro fantasma do andar de cima...

Unknown disse...

PQD existe uma lenda Asteca ou Inca, não sei ao certo, que afirma que quem dorme abaixo de um defunto (desde que sabedor que acima há um defunto) entrelaça sua alma com a do falecido e sonhará com ele quando estiver para morrer. Tente não sonhar com ele tá? Beijão

Unknown disse...

Zé,
Parabéns a vc e ao kibe pelo ótimo texto postado. Fiquei apenado com o PQD... PQP... que pica.... Confesso que eu tb não saberia como proceder neste insólito acontecimemto, provavelmente, teria as mesmas atitudes do PQD (ou similares). Só relacei ao final da leitura, quando fiquei sabendo que o PQD conseguiu resolver a desagradável e complicada situação.
Pra mim ficou a lição de como proceder frente a tal situação. Transmita meus parabéns ao PQD por manter sua tranquilidade na busca da solução

Dellaney disse...

Muito grande! Mais bem escrito! Quase 😴 pra ler! Vc sabe que hj em dia ,textos grande o ócio criativo e recreativo tem que ser pequeno e mais objetivos. Mais em fim valeu! Separado !!!!

Pintinho disse...

Quando passar o filme eu prometo que vejo até o fim .